Por Luiz Felipe Ramos e Mariana de Azevedo César

A Federal Trade Commission (FTC) dos Estados Unidos proibiu a adoção de contratos de não concorrência entre empregadores e seus colaboradores (empregados, executivos, prestadores de serviços, etc.), independentemente da indústria ou tipo e cargo do trabalhador com o qual a obrigação é adotada. A decisão, que entendeu que tais cláusulas são anticompetitivas, foi tomada em votação apertada de 3 votos a 2, no dia 23 de abril de 2024 [1].

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Embora sua legalidade ainda venha a ser discutida nos tribunais americanos, a comunidade jurídica brasileira já começa a discutir, diante da influência internacional da autoridade norte-americana, eventuais impactos da decisão no cenário nacional.

As cláusulas ou contratos de não-concorrência são aqueles que proíbem, penalizam ou impedem que trabalhadores procurem ou aceitem empregos em outras empresas ou que iniciem ou operem novos negócios, após o fim de sua relação empregatícia atual. São as chamadas non-competes, que se diferenciam dos acordos firmados entre empresas (no-poach agreements). Segundo a FTC, as cláusulas de não-concorrência seriam amplamente utilizadas na economia norte-americana, mesmo com funcionário de baixo nível hierárquico. Um em cada cinco profissionais estaria sob algum contrato que restringe sua movimentação, o que representaria cerca de 30 milhões de norte-americanos.

Segundo a determinação da FTC, ainda a ser confirmada nos tribunais, as atuais cláusulas de não-concorrência firmadas entre empresas e seus executivos de nível sênior podem permanecer vigentes. Também estariam preservados os acordos de Garden Leave com trabalhadores que seguem recebendo a sua remuneração usual ao longo do período.

No entanto, as empresas ficam proibidas de celebrar novas cláusulas e/ou contratos de não-concorrência com seus executivos seniores após a medida entrar em vigor. Executivos de nível sênior foram considerados aqueles que ganham, anualmente, mais do que US$ 151.164 e que ocupam cargos responsáveis pela tomada de decisões políticas na empresa. Decisões políticas são definidas como decisões que controlam aspectos significativos de uma entidade, não incluindo ações de aconselhar ou exercer influência sobre tais decisões (como presidentes, CEOs, vice-presidentes, diretores financeiros, entre outros cargos similares).

Já com relação aos demais funcionários de outros níveis hierárquicos, não serão consideradas válidas as cláusulas de não-concorrência mesmo se firmadas antes da entrada em vigor da medida da FTC. Embora não haja obrigação de rescisão dos atuais contratos de não-concorrência firmados com tais funcionários, esses devem ser formalmente comunicados de que tal contrato/cláusula não será aplicada ou executada após a medida entrar em vigor.

Segundo a FTC, os contratos de não-concorrência seriam responsáveis por manter os salários de funcionários em níveis mais baixos, inibir inovações e a formação de novos negócios. As cláusulas também poderiam ensejar mercados mais concentrados e preços mais altos aos consumidores. Mesmo funcionários de baixo nível hierárquico, sem qualquer tipo de acesso a informações comerciais sensíveis ou que tenham recebido investimentos em sua capacitação, estariam sujeitos a cláusulas desse tipo. Dessa forma, a adoção de cláusulas e contratos de não-concorrência entre empregadores e empregados foi considerada uma infração concorrencial.

O cenário brasileiro

Diferentemente dos Estados Unidos, no Brasil há aparente menor abrangência na adoção de contratos de não-concorrência entre empregadores e trabalhadores. Há também especificidades na legislação e jurisprudência que trata do tema. Além de uma sinalização inicial pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), cláusulas e contratos entre empresas empregadoras e seus empregados que restrinjam a liberdade destes após deixarem seus cargos já foram analisadas sob o viés trabalhista em diversas oportunidades, bem como justificadas com base na Lei nº 9.279/96 (Lei de Propriedade Intelectual).

O Cade já sinalizou que contratos de não concorrência impostos pelo empregador aos seus empregados, que restringem a capacidade deste de trabalhar para um empregador diferente caso deixe o seu emprego atual, constituem uma prática puramente vertical. Isso significa que tais cláusulas deveriam ser analisadas pela “regra da razão”, considerando-se a razoabilidade de seu escopo, alcance geográfico e duração [2]. Isto é, para o Cade, contratos de não-concorrência entre empregadores e seus funcionários não caracterizam práticas ilegais por si só, mas deverão ser analisados de acordo com as características do caso concreto.

O Cade também reconheceu que tais cláusulas são, em geral, justificados pela possibilidade de que empregados tenham tido acesso a segredos comerciais do empregador. Também se justificam pelo fato de que outras empresas possam se aproveitar do treinamento e know-how do funcionário, “pegando carona” nos investimentos feitos pelo empregador atual. Dessa forma, segundo o Cade, seria necessário contrapor as razões que justificam a cláusula com a restrição concorrencial por ela imposta, bem como a sua adequação ao caso concreto.

Sob o viés trabalhista, contratos de não-concorrência entre empregadores e empregados já foram admitidos em algumas oportunidades, desde que cumpridos alguns requisitos e limitações. Segundo desenvolvimento jurisprudencial, exige-se que tais contratos sejam adotados por escrito, contenham limitação temporal – sendo razoável o prazo máximo de dois anos –, em ramo de atividade e território específicos, bem como devem conter contraprestações, em geral, sob a forma de indenização [3].

Tais contratos também têm sido justificados como forma de evitar a prática de concorrência desleal, tipificada na Lei de Propriedade Industrial. Argumenta-se que a adoção de tais cláusulas poderia evitar que o funcionário receba dinheiro, utilidade ou recompensa para proporcionar vantagem indevida a concorrente do empregador. A cláusula preservaria o dever do emprego e buscaria evitar, mesmo após o término do contrato, a divulgação, exploração ou uso de conhecimento, informações ou dados confidenciais aos quais o funcionário teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia.

Note-se que há respaldo legal e jurisprudencial para tais cláusulas no Brasil. Além disso, há a percepção de que as cláusulas de não-concorrência são adotadas com menor frequência no cenário nacional. Assim, embora a discussão concorrencial sobre o tema possa ser influenciada pela decisão norte-americana, não é esperada uma guinada jurisprudencial por parte do Cade no curto prazo.

Um debate em andamento

Autores relevantes do direito antitruste norte-americano consideram, em sentido similar ao descrito pelo Cade, que a adoção de cláusulas de não-concorrência entre empregadores e empregados seria justificável em diversas situações. Por exemplo, evitar o efeito carona (free-riding), a fim de proteger investimentos realizados pela empresa empregadora no aprendizado, treinamento ou know-how de seus funcionários [4], ou para proteger segredos de negócios ou informações confidenciais às quais os funcionários tiveram acesso em função de seus cargos [5], evitando que sejam transferidos para outros empregadores caso o funcionário deixe o cargo.

Alguns grupos empresariais norte-americanos também argumentaram que a proibição determinada pelo FTC seria muito ampla, abrangendo funcionários que seriam altamente remunerados para aceitar tais cláusulas (como executivos-sênior) [6]. Também se argumentou que contratos de não-concorrência seriam necessários para proteger os investimentos realizados pelas empresas e para proteger informações sensíveis.

A FTC entendeu que as empresas empregadoras poderiam adotar medidas alternativas, e com menores impactos concorrenciais, para proteger seus investimentos e informações confidenciais. Por exemplo, a celebração de non disclosure agreements (NDAs), utilização de leis de proteção industrial/segredo industrial ou concorrência pela retenção dos funcionários por meio do aumento de sua remuneração.

Também considerou que os executivos de nível sênior teriam um papel fundamental na formação de novos negócios e no direcionamento das estratégias empresariais relacionadas à inovação, de modo que a adoção de obrigações de não-concorrência com tais funcionários teria um impacto provavelmente maior nas condições competitivas dos mercados se comparado aos demais funcionários de outros níveis hierárquicos. Daí a conclusão de que as possíveis justificativas para a adoção de contratos de não-concorrência, mesmo com executivos sênior, não compensariam os efeitos negativos de tais contratos na concorrência.

A medida adotada pela FTC tem previsão de entrada em vigor em 120 dias após sua publicação no Federal Register. No entanto, ainda é esperada discussão sobre o tema, uma vez que a US Chamber of Commerce, a organização Business Roundtable e a empresa de serviços tributários Ryan, LLC [7] já ingressaram com ações contestando a medida. Assim, sua implementação poderá ficar suspensa até uma decisão judicial.

No Brasil, a adoção de uma regra similar implicaria superar o entendimento recente do Cade de que tais cláusulas podem ser justificáveis e merecem ser analisadas sob a regra da razão. Além disso, esbarraria no que parecem ser entendimentos consolidados de outras áreas do direito. Tais mudanças não poderiam ser realizadas sem ampla discussão e reflexão. Diante do contexto nacional, aqui parece caber a sempre saudável cautela contra a importação acrítica de entendimentos jurídicos estrangeiros.

 

[1] Conforme https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2024/04/ftc-announces-rule-banning-noncompetes. Acessado em 25 de abril de 2024.

[2] Conforme Processo Administrativo nº 08700.004548/2019-61.

[3] Ver PERES, Antonio Galvão; ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. Cláusula de não-concorrência e confidencialidade no contrato de trabalho. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-trabalhista-nos-negocios/355683/clausula-de-nao-concorrencia-confidencialidade-no-contrato-de-trabalho.

[4] HOVENKAMP, Herbert J. Competition Policy for Labour Markets. U of Penn, Inst for Law & Econ Research Paper, p. 19-29. 2019. Disponível em https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/WD(2019)67/en/pdf.

[5] MARINESCU, Ioana; HOVENKAMP, Herbert J. Anticompetitive Mergers in Labor Markets. Indiana Law Journal, v. 94, n. 3, 2019. Disponível em: https://www.repository.law.indiana.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=11340&context=ilj.

[6] Ver https://apnews.com/article/jobs-employers-noncompete-agreements-economy-pay-4d7b3eb8e143cfd52025c7f2f5259fc4. Acessado em 30 de abril de 2024.

[7] Conforme https://edition.cnn.com/2024/04/25/success/ftc-noncompete-ban-lawsuit/index.html. Acessado em 17 de maio de 2024.

Publicado originalmente no Conjur.