Projeto que tramita na Câmara pode gerar distorções relevantes ao ambiente competitivo e à inovação na internet.

Por Ademir Pereira Jr. 

O PL 2768/2022 traz uma proposta de regulação concorrencial de mercados digitais. O PL parece seguir algumas iniciativas de regulamentação ex-ante de natureza concorrencial aplicáveis especificamente a “plataformas digitais”, sendo a principal referência nesse sentido o Digital Markets Act (DMA) da União Europeia. A aplicação desse tipo de regramento no Brasil, contudo, apresenta problemas importantes que demandam extensa discussão.

Primeiro, o PL 2768 não identifica qual problema de natureza concorrencial requer intervenção legislativa ou quais objetivos a serem alcançados por meio de legislação específica. O PL não foi precedido de análise de impacto legislativo ou exposição de motivos suficientemente detalhada para identificar que tipos de problemas concorrenciais impactem especificamente mercados digitais e que não poderiam ser resolvidos, por exemplo, por meio da aplicação da já existente (e consolidada) Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/11). Ao que parece, ele busca replicar (em parte) o DMA sem definir com clareza as razões para isso, o que busca e a necessidade de intervenção específica no Brasil.

Segundo problema central no PL diz respeito à junção de serviços/atividades absolutamente distintos sob uma única regulação aplicável genericamente a plataformas digitais. Regulações econômicas de caráter ex-ante tipicamente são desenhadas para lidar com uma indústria específica, disciplinando agentes que seguem modelos de negócio semelhantes (por exemplo, há regulações ex-ante sobre telefonia móvel, aviação, ferrovias etc.).

A existência de regulamentos específicos ou individualizados para cada atividade/serviço é central para que as chamadas “falhas de mercado” que demandam intervenção sejam especificamente identificadas e para que se possa analisar e estimar o impacto esperado da regulação num determinado mercado composto pelos agentes que performam as mesmas atividades.

Contudo, no caso de regulamentos como o DMA e na proposta do PL 2768, há uma regulação extensiva de natureza concorrencial aplicável a agentes com modelos de negócio distintos e que operam em mercados com dinâmicas particulares. Por exemplo, o desenvolvimento e oferta de sistemas operacionais (como Windows, iOS ou Android) é atividade absolutamente distinta da oferta de serviços de redes sociais; ainda, a oferta de serviços de computação em nuvem é muito distinta da oferta de ferramentas de busca.

Esses exemplos apenas ilustram o fato de que os mercados/serviços disciplinados pelo PL 2768 apresentam dinâmicas tecnológicas e competitivas muito diversas. Desse modo, não há qualquer clareza sobre qual falha de mercado pretende-se combater por meio de regulação e como ela se apresenta em cada um desses diversos mercados. Além disso, é praticamente impossível prever todos os potenciais impactos da regulação em cada um desses mercados/serviços. Uma regulação que busca disciplinar múltiplos serviços distintos com uma só regra tende a produzir efeitos ruins em muitos casos, ainda que possa eventualmente ser benéfica em certos mercados.

Finalmente, a técnica regulatória usada tem problemas importantes. No caso do DMA, há o recurso a proibições absolutas (per se) de certos comportamentos, o que pode ter um impacto negativo na inovação e na capacidade de escolha dos consumidores se não houver um estudo detalhado da necessidade de cada tipo de vedação para mercados/serviços específicos. Isso porque vários comportamentos vedados no DMA podem ser, na verdade, pró-competitivos e beneficiarem consumidores.

O recurso a uma abordagem baseada na forma, por meio de proibições ex-ante, deixaria de lado aquela baseada em efeitos, consolidada na maioria dos regimes de política de concorrência. O afastamento desse uma abordagem baseada nos efeitos pode levar a uma regulamentação excessiva e a um menor bem-estar dos consumidores em certos casos. Uma abordagem baseada em efeitos proporciona mais flexibilidade à avaliação de comportamentos e estratégias específicas.

 

Décadas de aplicação do direito da concorrência no Brasil e no mundo tem como elemento central a evolução de um regime de proibições ex-ante (também conhecido como regra per se) para um regime de análise baseado nos efeitos concretos de determinada conduta sobre um mercado específico (muitas vezes referido como regra da razão ou análise por efeitos).

A reversão desse regime e recurso a proibições ex-ante seria um retrocesso nesse processo de evolução. Isso porque a experiência do direito concorrencial demonstra que a maior parte das condutas unilaterais conhecidas tipicamente produzem eficiências importantes (deve-se destacar a qualificação de unilateral nesse contexto; condutas colusivas, que envolvem concertação de rivais, tipicamente produzem efeitos negativos sem eficiências).

Na verdade, condutas que produzem efeitos negativos não compensados por eficiências são extremamente excepcionais na prática concorrencial. Esses casos ocorrem apenas em contextos muito delimitados, em que um agente tenha posição dominante e capacidade de excluir rivais. Basta analisar o histórico de casos de autoridades concorrenciais para aferir isso: há um número de condenações extremamente reduzido em comparação ao número de investigações.

Isso não significa que regulações ex-ante nunca devam ser utilizadas. O ponto é que elas requerem um grau de especificidade e conhecimento muito maior de uma determinada indústria. Significa dizer que elas devem ser aplicadas a um mercado/serviço específico, para lidar com problemas concretamente identificados e sobre os quais já se tenha muito conhecimento acumulado. Esse não parece ser o caso das plataformas digitais.

Como já destacado, o DMA e o PL reúnem múltiplos mercados/serviços distintos, com dinâmicas de funcionamento muito diferentes. Além disso, não há exemplos concretos e conhecidos de condutas que sejam claramente problemáticas em qualquer mercado digital. A título de exemplo, a maioria das investigações concorrenciais conduzidas no Brasil e no mundo envolveram mercados altamente complexos, condutas que tinham justificativas pró-competitivas importantes e que demandaram análises muito cuidadosas, seja para arquivar processos ou condenar comportamentos. Esse grau de complexidade dos casos concretos é uma evidência forte de que não há conhecimento suficiente sobre determinado comportamento em um certo mercado que justifique regra ex-ante de proibição.

Finalmente, o PL 2768, além de prescrever comportamentos específicos (no art. 10), acaba confiando poderes extremamente amplos a um novo regulador para elaboração de regulamentos ex-ante e fiscalização dos agentes (no caso à Anatel). Essa opção legislativa por conferir poderes muito amplos a uma agência gera muita incerteza e insegurança jurídica acerca dos poderes do novo regulador, procedimentos e direcionamento a serem adotados.

Além disso, ignora toda a experiência do direito da concorrência e do Cade na aplicação da Lei 12.529/11. Embora a Lei 12.529/11 também estabeleça um mandato amplo ao Cade, ela se sustenta em décadas de construção e aplicação do direito da concorrência no Brasil e no mundo, o que garante maior segurança e previsibilidade aos agentes econômicos. Além disso, a Lei 12.529/11 confere ao Cade mandato para investigação de casos específicos e não elaboração de regulamentos ex-ante. A concessão de mandato muito aberto para uma agência reguladora proferir regulamentos ex-ante sem que haja um substrato legal que defina os limites da agência e principais prescrições gera um déficit democrático importante, além de incerteza e insegurança sobre as regras aplicáveis e critérios de decisão a serem adotados.

O PL 2768 pode gerar distorções relevantes ao ambiente competitivo e à inovação na internet, colocando em riscos os múltiplos benefícios gerados pelas plataformas digitais nas últimas décadas de desenvolvimento. A experiência nacional e internacional com as melhores práticas para regulação ex-ante de mercados e a tradição do direito concorrencial em matérias de concorrência deixa nítido que o PL tem falhas fundamentais discutidas brevemente nesse texto. Embora os pontos aqui discutidos não sejam capazes de exaurir o debate, podem servir como ponto de partida.

Publicado no JOTA.info