Por Ademir Antonio Pereira Jr., Luiz Felipe Rosa Ramos, Yan Villela Vieira e Gabriel de Aguiar Tajra para a retrospectiva 2023 do Consultor Jurídico

Ao longo de 2023, o Cade apresentou entendimentos sobre uma série de temas de fronteira na defesa da concorrência, incluindo a eventual aplicação deste ramo sobre iniciativas de ESG (Environmental, Social and Governance), o método de análise de teorias de dano em fusões verticais e conglomerais, o padrão de prova em cartéis do tipo “hub-and-spoke”, dentre outros.

Sob o ponto de vista institucional, o Cade encerra o ano com a perspectiva de grandes mudanças na composição do tribunal. Desde 5 de novembro, os prazos de processos do Cade foram automaticamente suspensos devido à perda do quórum mínimo do tribunal, com o término dos mandatos de quatro conselheiros entre outubro e novembro. Em dezembro, o Senado aprovou as nomeações para conselheiros de Camila Cabral Pires Alves, Carlos Jacques Vieira Gomes, Diogo Thomson de Andrade e José Levi Mello do Amaral Júnior. No momento da preparação deste texto, as posses ainda não haviam ocorrido. Espera-se que o tribunal possa retomar seus julgamentos, com a recomposição do quórum, no início de 2024.

No que se refere ao arcabouço normativo, em 2023 o tribunal publicou guias relevantes que visam orientar agentes públicos e privados. Em julho, a Superintendência-Geral do Cade (SG) publicou versão preliminar do futuro Guia para Análise de Atos de Concentração Não Horizontais (Guia V+), que tem como objetivo apresentar o padrão de análise de operações entre empresas que não concorrem no mesmo mercado, mas possuem atividades relacionadas em sentido vertical ou complementar.

Em novembro, o Cade publicou estudo intitulado “Concentrações Não-Horizontais: Experiência Nacional e Internacional e Subsídios para o Novo Guia do Cade”, sobre o mesmo tema. Por fim, o Guia de Dosimetria de Multas de Cartel, publicado pelo tribunal em setembro, consolida a jurisprudência do do Cade sobre critérios para fixação de multas por formação de cartel entre 2012 e 2022, embora suscite dúvidas em relação à sua compatibilidade com a jurisprudência do Cade sobre temas como troca de informação sensível.

Já o Departamento de Estudos Econômicos (DEE) publicou diversos estudos e cadernos durante o ano, incluindo o Documento de Trabalho “Fusões Conglomerais: Teorias do dano e jurisprudência do Cade entre 2012 e 2022”, os cadernos “Mercados de Telecomunicações” e “Mercados de Bancos e Seguradoras”, além de uma edição atualizada do estudo “Mercados de Plataformas Digitais”. Cada estudo compreende uma análise da jurisprudência do Cade sobre esses temas ou setores e perspectivas de jurisdições estrangeiras.

Análise de atos de concentração
No âmbito do controle de estruturas, o Cade proferiu sinalizações importantes sobre acordos relacionados a métricas de sustentabilidade e formação de joint-ventures (JV) entre concorrentes, e aprofundou discussões sobre teorias de dano em fusões verticais. Merecem destaque os seguintes casos:

Em março, aprovou, por unanimidade, a aquisição de ativos da União Vopak pela Cattalini, com impactos no mercado de movimentação e armazenagem de granéis líquidos no Porto de Paranaguá [1]. O tribunal condicionou a operação ao cumprimento, pela Cattalini, de compromisso de informar o Cade sobre futuras compras de imóveis na região, ainda que as operações não sejam de notificação obrigatória.

Em maio, reprovou, por maioria, operação envolvendo a aquisição do Grupo Smile pela Hapvida [2]. O Tribunal identificou sobreposições horizontais em mais de 170 mercados municipais em diferentes segmentos de planos de saúde, entendendo que as únicas rivais com presença nacional, Amil e Sulamérica, não seriam capazes de obstar eventual exercício de poder de mercado.

Em junho, aprovou, sem restrições, a formação de uma JV entre empresas do setor agrícola para o desenvolvimento de plataforma digital destinada à padronização de métricas de sustentabilidade [3]. A operação, inicialmente aprovada pela SG, foi avocada pelo Tribunal para esclarecer o padrão de análise de acordos de sustentabilidade entre rivais. Como sinalizado pelo tribunal, operações do tipo devem conter instrumentos que evitem (i) exclusão de rivais pela imposição de padrões de sustentabilidade e (ii) acesso a informações sensíveis de concorrentes e fornecedores.

Também em junho, aprovou, com restrições, a aquisição da Garoto pela Nestlé [4]. A operação foi originalmente notificada em 2002 e reprovada pelo CADE em 2004, mas acabou parcialmente suspensa por 20 anos em decorrência de disputa judicial. Após o início da reinstrução do caso por determinação judicial, a Nestlé apresentou proposta de acordo para encerrar as disputas, comprometendo-se a, dentre outras obrigações, não adquirir concorrentes com participação de mercado de 5% ou mais no setor de chocolates.

Ainda em junho, oaprovou, com restrições, a compra da Lubnor, unidade de refino da Petrobras, pela Grepar [5]. A operação ensejou integração vertical entre refino de petróleo e produção de derivados, sendo condicionada a obrigações de continuidade de fornecimento de insumos, dentre outros. O contrato de venda, contudo, foi rescindido pela Petrobras em novembro.

Em agosto, aprovou, com restrições, a formação de consórcio [6] entre Ultragaz, Supergasbras, Minasgás e Bahiana Distribuidora de Gás para o compartilhamento de bases para distribuição de gás liquefeito de petróleo. A operação foi condicionada a obrigações de continuidade da prestação de serviços a terceiros, além de exclusão de determinados estados em que a concentração de mercado seria muito elevada do escopo da operação.

Também em setembro, aprovou a prorrogação das atividades da Simba [7], uma JV entre SBT, Record e RedeTV! Cujo objetivo é o licenciamento conjunto de canais de TV, com restrições comportamentais voltadas a coibir o exercício de poder de mercado em face de pequenas e médias operadoras de TV paga.

Em outubro, aprovou, com restrições, a compra da DPA Brasil, uma JV entre Fonterra e Nestlé, pela Lactalis, fabricante de produtos lácteos [8]. A operação foi condicionada a remédios que incluem obrigação de licenciamento de determinadas marcas e de fornecimento de insumos a terceiros.

Também em outubro, aprovou, com restrições, formação de JV para prestação de serviços de transporte rodoviário de passageiros via plataforma digital entre Viação Águia Branca e JCA [9]. A operação foi condicionada a remédios que incluem limitação explícita da duração da JV, bem como do seu escopo a determinadas rotas analisadas pelo Cade e adoção de mecanismos de governança para evitar a troca de informações sensíveis.

Ainda em outubro, determinou a notificação da compra da MaxMilhas pela 123 Milhas. Embora não fosse de notificação obrigatória, o Tribunal entendeu que a operação geraria concentração superior a 20% no mercado de plataformas digitais de milhas áreas, de forma que seria necessário realizar uma análise de seus efeitos [10]. Ainda que ressaltando o esforço de autocontenção do Cade na aplicação do §7º do artigo 88 da Lei, o Voto Condutor declarou que “havendo dúvida acerca dos riscos concorrenciais da operação (…) deve vigorar o princípio do in dubio pro societat”.

Condutas unilaterais
No âmbito do controle de condutas unilaterais, o CADE manteve sua política de aplicação de medidas preventivas para salvaguardar mercados e celebração de Termos de Compromisso de Cessação (TCCs) para encerrar investigações. Temas centrais incluem acordos de exclusividade, fixação de preço de revenda (FPR) e condutas de conselhos de classe:

Em fevereiro, o Tribunal homologou proposta de TCC do iFood para suspender investigação envolvendo acordos de exclusividade com restaurantes [11]. Por meio do TCC, o iFood se comprometeu a limitar seus contratos de exclusividade em termos de volume bruto de mercadorias e restaurantes cadastrados, bem como se comprometeu a não tornar exclusivas redes de franquia ou oferecer descontos que induzam à exclusividade de fato, a fim de assegurar que plataformas rivais ganhem escala e se tornem igualmente atrativas.

Em agosto, o Tribunal condenou o Conselho Federal de Odontologia por restringir a aceitação de cartões de desconto em serviços ofertados por dentistas, concluindo que a restrição do Conselho limitava a oferta de serviços com valores acessíveis aos consumidores. Na mesma investigação, foi celebrado TCC com o Conselho Regional de Minas Gerais, que se comprometeu a modificar suas restrições a cartões de desconto [12].

Também em agosto, o CADE arquivou investigação envolvendo política de FPR supostamente adotada pela Technos, no mercado de relógios de pulso [13]. O Tribunal concluiu que práticas de FPR são presumidas como anticompetitivas quando adotadas por empresas com poder de mercado, presunção que pode ser desconstituída por prova de inexistência de efeitos. No caso, o CADE verificou que a Technos tinha poder de mercado limitado diante da elevada rivalidade no setor e que os preços praticados no mercado não aumentaram em decorrência da suposta prática.

Em outubro, o Cade homologou propostas de TCCs com empresas do grupo da ClickBus e um diretor comercial em investigação no mercado de venda de passagens rodoviárias vendidas via marketplaces [14]. Por meio dos TCCs, as empresas se comprometeram a não celebrar acordos exclusividade e garantiram tratamento isonômico para o acesso a sua plataforma de venda de passagens.

Igualmente em outubro, o Tribunal decidiu manter medida preventiva da SG que proibiu a Caixa Econômica Federal e a Febralot de divulgar alegações de que atividades de plataformas de intermediação de jogos lotéricos são ilegais e descredenciar unidades lotéricas com relação comercial com tais plataformas [15].

Ainda em outubro, o Cade homologou proposta de TCC da Ambev, que se comprometeu a limitar acordos de exclusividade com bares, restaurantes e casas noturnas em termos de quantidade de estabelecimentos e volume de vendas de cerveja para suspender investigação do Cade [16].

Condutas colusivas
No âmbito do controle de condutas colusivas, o Cade aprofundou o padrão de valoração de provas apresentadas por signatários de acordos de colaboração e desenvolveu padrões de análise de cartéis hub-and-spoke. Além disso, a utilização da estimativa de “vantagem auferida” para guiar a dosimetria de multas por cartel deixou de ser utilizada (havia sido aplicada em alguns casos entre 2021 e 2022). Casos decididos em 2023 que merecem destaque incluem:

Em março, o arquivou investigação de suposto cartel e compartilhamento de informações sensíveis por empresa do mercado de sistemas térmicos automotivos, concluindo que documentos produzidos unilateralmente por signatários de acordos de colaboração, sem evidências adicionais que os corroborem, seriam insuficientes para comprovar a conduta [17].

Em abril, condenou empresas do mercado de revenda de lousas digitais por cartel hub-and-spoke, em que concorrentes horizontalmente relacionados (“spokes”) não se comunicam diretamente, mas sim por meio de um agente verticalmente relacionado que funciona como um ponto focal (“hub”) [18]. No caso, segundo o CADE, uma distribuidora de lousas digitais repassava informações, inclusive sobre preços, entre revendedores que se coordenavam para participar de licitações. Trata-se do primeiro caso do tipo condenado no Brasil.

Em maio, arquivou investigação envolvendo suposto convite à cartelização no mercado de revenda de combustíveis por entender que conversas com teor dúbio em aplicativo de mensagens, sem evidências adicionais de acordo anticompetitivo, não seriam suficientes para comprovar a materialidade da conduta [19].

Em setembro, o Cade reduziu o valor de multas aplicadas à Telefônica, Claro e Oi por condutas concertadas envolvendo a formação de consórcio para participar de licitação dos Correios [20]. Segundo o Tribunal, as multas impostas em decisão anterior haviam tomado como base estimativas da “vantagem auferida” com a conduta, dosimetria típica de cartel, mas a prática das empresas não configuraria cartel propriamente.

Por fim, ainda em setembro, o Tribunal manteve medida preventiva da SG que proibiu a Associação dos Hospitais Privados de Alta Complexidade do Estado de Goiás de influenciar negociações entre hospitais filiados com operadoras de planos de saúde, bem como que os hospitais trocassem informações sobre negociações ou coordenassem paralisações coletivas [21].

Agenda para 2024
Em 2024, com a posse de quatro novos conselheiros, o Tribunal do Cade poderá passar a ter nova maioria em casos complexos que dividem opiniões. Com isso, é possível que passe a adotar novos entendimentos. Além disso, o mandato do Superintendente-Geral Alexandre Barreto de Souza terminará em abril de 2024, podendo haver a recondução.

Temas controversos que certamente continuarão na pauta da defesa da concorrência no Brasil incluem a análise de efeitos de condutas unilaterais, a diferenciação entre condutas de formação de cartel e troca de informações sensíveis, o posicionamento do Cade em casos que envolvem práticas unilaterais em mercados digitais com efeitos em todo o mundo, e o padrão de prova aplicável em casos de cartel. Além disso, institucionalmente, é esperado que o Cade consolide e publique a versão final do Guia V+, e disponibilize para consulta uma minuta de guia de análise de condutas unilaterais, tendo em vista que foi formado grupo de trabalho para elaboração do documento em fevereiro de 2023. Por fim, há a expectativa de implementação do sistema “e-Notifica”, anunciado em novembro de 2023, que automatizará a notificação de atos de concentração ao Cade.


NOTAS
[1] Ato de Concentração n° 08700.001197/2022-32.
[2] Ato de Concentração n° 08700.004046/2022-36.
[3] Ato de Concentração nº 08700.009905/2022-83.
[4] Ato de Concentração nº 08012.001697/2002-89.
[5] Ato de Concentração nº 08700.004304/2022-84.
[6] Ato de Concentração nº 08700.004940/2022-14.
[7] Ato de Concentração nº 08700.009574/2022-81.
[8] Ato de Concentração n° 08700.001128/2023-18.
[9] Ato de Concentração nº 08700.002488/2022-48.
[10] Procedimento Administrativo para Apuração de Ato de Concentração nº 08700.004240/2023-01.[11] Requerimento de TCC nº 08700.005597/2022-17 e Inquérito Administrativo nº 08700.004588/2020-47.
[12] Processo Administrativo nº 08700.002535/2020-91 e Requerimento de TCC nº 08700.002650/2023-17.
[13] Processo Administrativo nº 08700.004563/2017-48.
[14] Requerimentos de TCC nº 08700.005466/2023-11, 08700.000390/2023-37 e 08700.003919/2023-74, referentes ao Inquérito Administrativo 08700.004318/2018-11.
[15] Recursos Voluntários de nº 08700.005883/2023-63 e 08700.005885/2023-52, referentes ao Inquérito Administrativo nº 08700.003430/2023-01.
[16] Requerimento de TCC nº 08700.006166/2023-59 e Inquérito Administrativo nº 08700.001992/2022-21.
[17] Processo Administrativo nº 08700.010323/2012-78.
[18] Processo Administrativo nº 08012.007043/2010-79.
[19] Processo Administrativo nº 08700.005636/2020-14.
[20] Processo Administrativo nº 08700.011835/2015-02.
[21] Inquérito Administrativo nº 08700.004116/2023-37.