Caso Garoto-Nestlé mostra influência do Direito Concorrencial na economia

Uma das mais emblemáticas histórias envolvendo Direito e empresas na área concorrencial terminou no dia 7 de junho de 2023. Depois de 20 anos, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) autorizou a compra da Chocolates Garoto pela Nestlé Brasil. A novela dessa negociação mostra a um só tempo a necessidade do Direito para orientar os negócios e a dificuldade em aplicar as leis no tempo e no espaço que a atividade empresarial demanda.

“Considerando o histórico de mais de 20 anos desse caso e a existência de um novo marco legal do antitruste no país, a negociação entre Cade e Nestlé resultou em um acordo com medidas que se mostram proporcionais e suficientes para mitigar impactos concorrenciais no cenário atual e garantir os interesses dos consumidores”, disse o presidente do Cade, Alexandre Cordeiro.

A compra da Garoto pela Nestlé foi feita em 2002 e vetada dois anos depois pelo Cade, já que resultaria em uma concentração de 58% do mercado nacional de chocolates. Na época, a análise dos atos de concentração ocorria depois da concretização dos negócios. A Lei 12.529/2011 modificou esse modelo e o Cade passou a analisá-los previamente.

“Para a Nestlé, o crescimento e o fortalecimento da Garoto sempre foram cruciais para a evolução da empresa no Brasil. Mantivemos investimentos consistentes, sempre destacando suas marcas icônicas e fomentando o desenvolvimento de toda a cadeia de valor. A conclusão do Cade é técnica e revela entendimento sobre um setor que se mostra muito competitivo, aberto e em crescimento”, declarou o CEO da Nestlé Brasil, Marcelo Melchior.

A aquisição foi condicionada à celebração de acordo de controle de concentrações (ACC), que impôs quatro compromissos para preservar a concorrência no mercado de chocolates: a Nestlé deve manter a operação da fábrica da Garoto em Vila Velha, no Espírito Santo, por sete anos; neste período, a empresa deverá informar ao Cade qualquer aquisição de empresa ou marca no mercado de chocolates e não poderá intervir em pedidos de terceiros relacionados a tarifas diferenciadas na importação de chocolates; e por cinco anos, não poderá adquirir ativos que representem participação superior a 5% do mercado de chocolates.

De acordo com a Superintendência-Geral do Cade, responsável por analisar todos os atos de concentração, a rivalidade no mercado nacional de chocolates foi reconfigurada nos últimos 20 anos, por isso, não faria sentido manter a decisão de reprovar o negócio. O acordo também põe fim ao processo que tramitava na Justiça desde 2005, após a autoridade antitruste proibir a compra. Em 2009, decisão judicial determinou que o Cade reabrisse o processo de análise do ato de concentração e fizesse um novo julgamento. Em 2021, a análise foi retomada.

O caso da Garoto e Nestlé exemplifica bem como o Direito Concorrencial influencia na economia do país. De acordo com os incisos IV e V da Constituição, a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, entre outros, os princípios da livre concorrência e defesa do consumidor.

O Direito Concorrencial é uma área associada ao Direito Econômico onde se analisa as relações concorrenciais entre empresas e pessoas. O objetivo é garantir a competitividade de forma justa e saudável, promover o bom funcionamento do mercado e estabelecer políticas de concorrência leal. Além disso, esse ramo do Direito impacta no dia a dia dos consumidores. Com o mercado regulado, a chance de o direito do consumidor ser violado fica reduzida.

Uma das vertentes do Direito Concorrencial está focada no mercado de fusões e aquisições. Relatório da KPMG Brasil mostra que em 2021 o Brasil teve o melhor desempenho dos últimos 25 anos, tendo registrado 1.963 transações. O número é 59% superior do que foi observado em 2019, quando foram registradas 1.231 transações. O último trimestre de 2021 registrou 602 negócios concluídos, o melhor período da história.

“Estes resultados consolidam a tendência de investimento em transformação digital e inovação, protagonizadas pelas companhias brasileiras, multinacionais e investidores financeiros, que tem feito aportes estratégicos em diversos segmentos de negócios”, explica o estudo.

No segmento de negócios, em 2021, as empresas de internet e de tecnologia e inovação responderam, juntas, por mais da metade do total de operações no Brasil. As empresas do setor de internet estão no topo do ranking, com 658 negócios — 34% do total de transações. Já o setor de tecnologia e inovação teve 358 negócios, representando 18%. O segmento de instituições financeiras também foi impactado. Foram 161 transações no total, sendo a maioria na busca por modelos de negócios inovadores.

Ao final do ranking, estão os setores de serviços para empresas (78 transações), hospitais e laboratórios de análises clínicas (70) e telecomunicações e mídia (66).

A outra vertente do Direito Concorrencial é o combate aos cartéis. Trata-se de conduta anticompetitiva em que concorrentes fazem acordo de cooperação para fixar preços, dividir mercados, estabelecer quotas ou restringir participação e adotar posturas combinadas em licitações. De acordo com o Cade, é a mais grave infração à ordem econômica. Estimativas da OCDE apontam que os cartéis geram sobrepreço entre 10% e 20% comparado ao preço praticado em um mercado competitivo.

O primeiro cartel punido no país foi o chamado “cartel do aço”. Em 1999, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Cosipa e a Usiminas foram condenadas pelo Cade a pagar multa de R$ 50 milhões por cartel na comercialização de aço plano comum. Em 2022, o STJ anulou a decisão por entender que houve afronta ao processo administrativo, uma vez que o Cade negou a produção de provas por umas das partes.

Alexandre Barreto, superintendente-geral do Cade, entende que a política de defesa da concorrência “envolve a necessidade de agências reguladoras estarem atentas para a preservação da concorrência no serviço regulado, bem como a atuação do Ministério da Economia para adoção de agenda microeconômica que traga uma maior competitividade e maior incentivo à concorrência no país”.

Para Barreto, o Brasil tem uma economia concentrada. “Durante muito tempo, o Brasil viveu sob políticas de proteção comercial que, por um lado, protegem a economia nacional, mas, por outro, expõe-nos menos à concorrência. Nosso desfio é encontrar o equilíbrio entre essas duas políticas”, destacou. “Com maior concorrência, os resultados para o consumidor são visíveis: menores preços, maior qualidade, maior diversidade de escolha. O grande beneficiado da política de defesa da concorrência é o consumidor.”

O advogado Luiz Felipe Rosa Ramos, do Del Chiaro Advocacia, aponta como tendências do Direito da Concorrência no Brasil o aumento do foco em investigações de condutas unilaterais e o incentivo a ações privadas de reparação de danos. Existe também uma tendência a olhar com maior atenção as interfaces entre o Direito Concorrencial e outras áreas como, por exemplo, o Direito do Trabalho.

“Existe uma interface entre o Direito Concorrencial e o mercado de trabalho que tem sido objeto de atenção cada vez maior no âmbito internacional”, destaca o advogado. “Temos casos em que não existe uma combinação sobre o preço de um produto, mas sim um acordo, uma troca de informação sensível sobre os salários que essas empresas pagam para seus funcionários. Isso geraria uma restrição à concorrência no mercado de trabalho, já que o trabalhador fica com menos opções para poder se empregar”, destacou.

Outra tendência, segundo Rosa Ramos, é que haja mais discussões internacionais sobre como os objetivos do antitruste podem impactar o Brasil, com maior atenção a temas como trabalho, privacidade e sustentabilidade.

“Existem estudos sobre a interface entre o Direito Concorrencial e o tema da privacidade, proteção de dados, cada vez mais relevante no âmbito dos mercados digitais, e cada vez mais se discute se o Direito Concorrencial deve olhar com mais atenção para questões de sustentabilidade, proteção do meio ambiente, se as autoridades antitrustes devem incorporar também esse tipo de elemento como elemento de benefício ao consumidor.”

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