Por Ademir Antonio Pereira Jr., Yan Villela Vieira e Maria Eduarda Scott


No fim de julho, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) suspendeu cautelarmente a disponibilização de ferramenta que atribui notas a alimentos e bebidas vendidos por uma das maiores redes varejistas do Brasil com base em aspectos nutricionais. Essa avaliação dos alimentos e bebidas vinha sendo utilizada para direcionar os consumidores para opções alegadamente mais “equilibradas” (do ponto de vista nutricional) e/ou mais baratas (sob o aspecto de preço). A rápida reação da Senacon marca um de bate fundamental na regulação da indústria de alimentos e bebidas.

Tradicionalmente, a regulação econômica lida com três preocupações ou “falhas” de mercado: poder de mercado, externalidades e assimetria informacional. No caso da indústria de alimentos e bebidas, a presença dessas falhas pode não apenas prejudicar o mercado do ponto de vista econômico, mas também impactar negativamente a saúde pública. Reguladores efetivos não impõem normas unilateralmente, devem ouvir grupos com interesses distintos na regulação.

Nesse sentido, muito se tem discutido sobre a adoção de alertas visuais de potenciais danos à saúde causados pela ingestão excessiva de certos alimentos e bebidas como forma de reduzir a assimetria informacional dos consumidores e gerar spillovers positivos, ou seja, efeitos que extrapolam um consumidor individual e beneficiam a sociedade. Nos últimos anos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) promoveu amplo debate a respeito desse tema e, após muita discussão e estudos (inclusive extensa Análise de Impacto Regulatório – AIR), adotou regras sobre rotulagem.

A Anvisa procurou assim criar um standard para que, a partir de 2022, fabricantes de alimentos e bebidas comuniquem de maneira clara e inequívoca o consumidor sobre a presença de grande quantidade de certas substâncias, conhecido como rotulagem frontal. Esse standard de design e comunicação procura reduzir a assimetria informacional dos consumidores sem eliminar sua liberdade de decidir. A iniciativa, contudo, pode ser frustrada pela atuação de agentes privados com poder de mercado e condições de impactar a dinâmica de concorrência.

Standards são todos os tipos de padrão de especificações técnicas que levam a um design comum de produto ou serviço. Para que standards funcionem, é necessário que de fato resultem em padronização e sejam adequadamente compreendidos. Nesse caso, uma vez que a Anvisa já criou um standard, o lançamento em paralelo de outro parâmetro de avaliação por ente privado pode confundir os consumidores e limitar a eficácia do standard definido pelo regulador (no caso mencionado, o padrão adotado pelo agente privado foi inclusive avaliado e rejeitado pela Anvisa).

Com diferentes classificações aplicáveis aos alimentos, como o consumidor decidirá? O risco é que o consumidor confuso com o excesso de parâmetros de avaliação simplesmente passe a ignorar informações sobre o tema, eliminando assim os benefícios que a regulação pretendia produzir.

Além de criar confusão entre os consumidores, agentes que transacionam em plataformas sujeitas a parâmetros diversos tendem a sofrer com aumento de custos, dado que precisam fornecer informações específicas, participar de processos de avaliação e constantes atualizações a cada reformulação de produto. Esse efeito pode se multiplicar exponencialmente na hipótese de diversas plataformas/varejistas passarem a adotar parâmetros próprios. Com aumento de custos, pode-se elevar as barreiras à entrada e reduzir a concorrência nos mercados de alimentos e bebidas, prejudicando a competição e, como consequência, os consumidores.

Além disso, a existência de standards privados gera risco de abuso por agentes que detêm poder de mercado. Em alguns casos, por exemplo, o standard pode ser utilizado para induzir o consumidor a comprar os produtos de marca própria da rede varejista que disponibiliza a ferramenta. Nesse sentido, a Senacon já indicou a necessidade de análise também pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que cuida da questão concorrencial.

Por fim, uma das maiores virtudes da regulação setorial é o procedimento participativo para sua criação. Reguladores efetivos não impõem normas unilateralmente. Para criar regulações eficazes, devem ouvir grupos com interesses distintos na regulação, considerar suas contribuições e avaliar os impactos regulatórios de cada proposta para definir o que será mais eficaz – como fez a Anvisa no desenvolvimento da regulamentação de rotulagem nutricional. Um agente econômico autointeressado, entretanto, não terá incentivos para levar em consideração a posição dos diversos agentes que serão impactados, especialmente quando se tratar de seus concorrentes.

O caso em análise na Senacon revela que a regulação de standards na indústria de alimentos e bebidas será um provável campo de disputa entre regulação estatal e ações de entes privados nos próximos anos. Iniciativas privadas que busquem erodir a regulação setorial demandarão uma atuação integrada e multidisciplinar por parte das agências reguladoras. A independência e a especialidade técnica que caracteriza essas agências serão definidoras do futuro dessa indústria e de sua relação com a saúde pública.

Leia o artigo no Valor Econômico