Por José Del Chiaro, Fernanda Arbex e Luiz Felipe Rosa Ramos

Na noite da última segunda-feira (30/3), foi apresentado o Projeto de Lei 1179/2020 pelo senador Antônio Anastasia (PSD/MG) propondo diversas alterações temporárias no ordenamento jurídico em razão da pandemia do novo coronavírus (covid-19).

O PL propõe a instituição de normas de caráter transitório e emergencial para a regulação das relações jurídicas de Direito Privado durante o período da pandemia do Novo Coronavírus. Dessa forma, suspenderá a aplicação de algumas normas do ordenamento jurídico brasileiro visando amenizar as consequências causadas pela pandemia.

Dada a sua abrangência e relevância, a alteração legislativa tem suscitado debates no mundo jurídico. Embora o projeto alcance também áreas diversas como a resolução contratual por onerosidade excessiva e a locação de imóveis, este artigo discutirá os principais impactos para o direito concorrencial, consumerista e de proteção de dados. Especificamente, procura abordar consequências não desejadas – efeitos colaterais, por assim dizer – da eventual aprovação do projeto.

Contexto político

O Projeto foi fruto de esforço conjunto de diversos atores jurídicos e políticos, sendo destacada a participação do Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli.

A matéria está prevista para ser incluída em pauta de votação ainda nessa semana no Plenário Virtual do Senado Federal e a tendência é que seja aprovada sem maiores discussões, em virtude da articulação prévia à apresentação da matéria.

O seu autor ocupa interinamente a presidência do Senado Federal, em decorrência do afastamento por motivos de saúde do senador Davi Alcolumbre (DEM/AP).

Impactos jurídicos – direito concorrencial

O PL prevê a suspensão dos incisos XV e XVII do § 3º do art. 36 da Lei de Defesa da Concorrência até 31 de outubro de 2020. O efeito prático dessa suspensão é pouco expressivo. Isso porque esses dispositivos preveem como infrações concorrenciais as práticas de preço predatório e de cessação de atividades empresariais sem justa causa. Quem lida com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) sabe que tais condutas historicamente já não têm servido de base a condenações pela autarquia.

De qualquer forma, o PL dispõe que todas as infrações previstas no art. 36 da Lei de Defesa da Concorrência serão analisadas à luz das “circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia”. Esse dispositivo tem redação indeterminada e suscita incertezas. Haverá uma presunção de legalidade em relação às infrações? Qual será a metodologia para identificação das circunstâncias extraordinárias? A norma vale também para cartéis? Haverá afastamento da aplicação de sanções ou dosimetria mais benéfica ao administrado? A Justificativa apresentada limita-se a afirmar que “cria-se um parâmetro para que, no futuro, certas práticas sejam desconsideradas como ilícitas em razão da natureza crítica do período da pandemia.”

Suspende-se também o inciso IV do art. 90 da Lei de Defesa da Concorrência, que estabelece contratos associativos, consórcios ou joint ventures como atos de concentração a serem notificados previamente ao Cade. Tais operações não precisarão ser submetidas ao Cade enquanto durar o período da pandemia. Com isso, arranjos associativos entre empresas – alguns com potencial de aumento de concentração e impacto para os consumidores – poderão ser consumados sem análise prévia do Cade.

Note-se, a esse respeito, que contratos com prazo inferior a 2 (dois) anos já não eram de notificação obrigatória, nos termos da Resolução 17/2016 do Cade. Considerando que contratos feitos especificamente para lidar com a atual crise podem durar menos de 24 meses, eles já não seriam de notificação obrigatória ao Cade. Desse modo, o PL introduz uma isenção temporária para contratos associativos que pode gerar incertezas: por exemplo, contratos com mais de dois anos de duração celebrados na vigência da Lei derivada do PL devem ser notificados após 31 de outubro?

Além disso, estabelece-se uma isenção para joint-ventures que, na prática do Cade, compreendem estruturas societárias e com alguma perenidade. Desse modo, o projeto gera a possibilidade de grandes e perenes associações empresariais passarem à margem da análise do Cade.

Proposta de Emenda apresentada pelo senador Ciro Nogueira esclarece que a suspensão do art. 90 não afasta a possibilidade de análise posterior do ato de concentração ou de apuração de infração à ordem econômica. Isso já decorre, na verdade, do que dispõem o §7º do art. 88 da Lei, que faculta ao Cade requerer a submissão de um ato de concentração no prazo de um ano, e o próprio artigo 36, que dispõe sobre as infrações da ordem econômica. Contudo, entendemos que a emenda é oportuna para evitar interpretações desarrazoadas.

Uma solução alternativa para lidar com o contexto particular da pandemia seria reduzir o prazo para exame de operações cuja justificativa econômica fosse a crise provocada pelo novo coronavírus, criando-se um procedimento sumário (“fast track”) excepcional para o contexto atual. Essa mudança pode ser feita pelo próprio Cade e não depende de alteração legislativa.

Impactos jurídicos – relação de consumo

Também questionável a regra do Capítulo V, que estabelece a suspensão da aplicação da regra do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor por 07 (sete) meses, inviabilizando assim o exercício do direito de enjeitar a compra de produtos realizada pela internet, principal veículo de aquisição de bens neste período de pandemia. Além de subtrair a proteção do hipossuficiente, o próprio comércio eletrônico poderá ser afetado em sua demanda ante a ausência de garantia de desistência.

Impactos jurídicos – LGPD

Por fim, também suscita dúvidas o artigo que prevê a prorrogação da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, hoje prevista para ocorrer em agosto de 2020. O texto do PL determina a entrada em vigor 36 (trinta e seis) meses após a data da publicação da LGPD – 12 meses a mais, portanto, que os 24 já previstos na Lei. A Justificativa, por sua vez, afirma que vigência é postergada “por mais 18 meses”, possivelmente fazendo referência à redação original da Lei, anterior à MP 869/2018 (Lei 13.853/2019).

A prorrogação tem justificativa razoável, qual seja, não onerar empresas em um momento de dificuldades financeiras. No entanto, também pode trazer consequências indesejadas. A LGPD poderia trazer segurança jurídica para muitas das medidas que serão adotadas pelo setor público e privado na contenção da pandemia, algumas das quais tendem a se consolidar em um momento posterior. Esse vácuo legislativo pode acabar levando a soluções inadequadas aos conflitos que fatalmente surgirão. Além disso, trata-se de uma legislação fundamental para a inserção do Brasil nas cadeias internacionais de valor – sem as quais dificilmente conseguiremos superar a iminente crise econômica.

De toda forma, é importante que eventual prorrogação não seja renovada e venha acompanhada de ações concretas no sentido de implementar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), bem como de esclarecer/regular os pontos deixados em aberto pela LGPD. Caso contrário, estaríamos apenas adiando o enfrentamento de uma realidade inevitável – postura que a covid-19 já nos ensinou ser, no mínimo, temerária.

Artigo publicado no portal de O Estado de São Paulo.